PROCESSO
O Advogado Público nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade
Guilherme José Purvin de Figueiredo e Marcos Ribeiro de Barros Procuradores do Estado de São Paulo
01. Qual a postura que devem assumir o Advogado da União
e o Procurador do Estado nas ações diretas de inconstitucionalidade?
Esta indagação tem sido objeto de amplo debate, sendo fundamental
que este se trave longe da visão conservadora que considera tal
profissional como defensor, sempre, dos interesses do governante.
O § 3º do artigo 103 da Constituição Federal (na
Carta Paulista, o § 2º do artigo 90) determina a citação
prévia do advogado público quando da apreciação
da inconstitucionalidade, em tese, de norma legal ou ato normativo. Por
outro lado, o artigo 4º, § único, in fine, da Lei nº
4.337/64, que regula a declaração de inconstitucionalidade,
faculta ao procurador dos órgãos interessados defender a
constitucionalidade do ato impugnado 1.
Seriam tais dispositivos suficientes para que concluíssemos que
o advogado público (Advogado da União ou Procurador do Estado)
é citado com vistas à instauração
do contraditório e que é impositivo que ele sempre defenda
lei inquinada de inconstitucional? Estas são as indagações
a que nos propomos a debater neste breve estudo.
02. Se entendêssemos que o Estado (União, Estado-membro,
Distrito Federal, Município) é o réu na ADIn, seria
vedada ao advogado público qualquer manifestação que
implicasse na disponibilidade do conteúdo material do litígio.
Aventemos a hipótese de inexistência de motivo juridicamente
consistente para que o advogado público defenda a validade do ato
que se pretende extirpar do ordenamento jurídico. Mesmo aqui, segundo
pode-se argumentar, o reconhecimento da procedência do pedido não
seria possível, vez que afrontaria o princípio da indisponibilidade
do interesse público.
Diversos motivos, porém, nos levam a concluir que, a partir de uma
interpretação sistemática de nosso ordenamento jurídico,
tais premissas se revelam falsas.
Inicialmente, é de todo oportuno salientar que a ADIn não
é ajuizada em face de uma pessoa física ou jurídica.
Na petição inicial é formulado pedido ao tribunal
competente para que julgue determinada lei ou ato normativo inconstitucional,
a fim de que o Poder Judiciário determine que a norma combatida
seja eliminada do ordenamento jurídico positivo. O tribunal, recebendo
a inicial, solicita informações aos Poderes Executivo e Legislativo
da pessoa jurídica de direito público - editora da lei impugnada
- para que preste informações.
O Min. Moreira Alves, na qualidade de relator da representação
1016 (RTJ 95/999), ainda à luz da Constituição anterior,
assim se posicionou: "A representação de inconstitucionalidade,
por sua própria natureza, se destina tão somente à
defesa da Constituição vigente quando de sua propositura.
Trata-se, em verdade, de ação de caráter excepcional
com acentuada feição política pelo fato de visar ao
julgamento, não de uma relação jurídica concreta,
mas da validade da lei em tese, razão por que o titular dela - e
árbitro da conveniência de sua propositura - é um órgão
político (o Procurador-Geral da República), e a competência
exclusiva para processá-la e julgá-la cabe ao Supremo Tribunal
Federal, como cúpula de um dos poderes da União. Tais características
estão a mostrar que não é ela uma simples ação
declaratória de nulidade, como qualquer outra, mas, ao contrário,
um instrumento especialíssimo de defesa da ordem jurídica
vigente estruturada com base no respeito aos princípios constitucionais
vigentes".
Nesse diapasão, Clèmerson Merlin Clève entende que: "A finalidade
da ação direta de inconstitucionalidade não é
a defesa de um direito subjetivo, ou seja, de um interesse juridicamente
protegido lesado ou na iminência de sê-lo. Ao contrário,
a ação direta de inconstitucionalidade presta-se para a defesa
da Constituição. A coerência da ordem constitucional
e não a defesa de situações subjetivas consubstancia
a finalidade da apontada ação. Por isso consiste em instrumento
da fiscalização abstrata de normas, inaugurando 'processo
objetivo' de defesa da Constituição. Cuidando-se de processo
objetivo, na ação direta de inconstitucionalidade não
há lide, nem partes (salvo no sentido formal), posto inexistirem
interesses concretos em jogo. Por isso, as garantias processuais previstas
pela Constituição, não se aplicam, em princípio,
à ação direta de inconstitucionalidade" 2.
Com base em tais elementos, podemos concluir que a citação
na ADIn tem por objetivo apenas e tão somente o chamamento do representante
judicial de tal pessoa jurídica para integrar o processo - analogamente
ao que ocorre nos autos do inventário (art. 999 do CPC), onde a
Fazenda Pública também é citada para fiscalizar
o correto recolhimento do imposto causa mortis, atribuído pela Constituição
Federal aos Estados (sem que com isto assuma a posição de
autora ou ré); ou na ação de usucapião de terras
particulares (art. 943 do CPC), onde os representantes da Fazenda Pública
da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios
e dos Municípios são intimados por via postal, para
que manifestem interesse na causa - nos dois últimos casos com a
finalidade exclusiva de resguardar eventuais interesses do Erário.
03. Não obstante o que até aqui foi exposto, o
STF, em julgamento da ADIn nº 72-1 ES-TP, de 22/3/90, e que teve como
relator o E. Ministro Sepúlveda Pertence, adotou o seguinte entendimento:
"Erigido curador da presunção de constitucionalidade
da lei, ao advogado-geral da União ou quem lhe faça as vezes,
não cabe admitir a invalidez da norma impugnada, incumbindo-lhe,
sim, para satisfazer requisito de validade do processo da ação
direta, promover-lhe a defesa, veiculando os argumentos disponíveis"
(DJU, 25.5.90, p.4.603).
O entendimento do Excelso Pretório não encontrou ressonância
junto à doutrina mais autorizada.
De acordo com o magistério de Antonio Cezar Lima da Fonseca, "a
norma colocou em posição delicada os advogados do Estado,
pois se obrigam a fazer verdadeiras peripécias jurídicas
para defenderem atos manifestamente inconstitucionais (...). Tal obrigatoriedade
- de o Advogado-Geral defender a norma a qualquer custo - é, data
venia, equivocada. À evidência, o Advogado expõe-se
em demasia, às vezes ao risível, pelas teses mirabolantes
que precisa criar, para defender um legislador, muitas vezes, suspeito"
3.
Rogério Lauria Tucci e José Rogério Cruz e Tucci,
por seu turno, afirmam que "...o Advogado-Geral da União não
se encontra, em princípio, obrigado a opinar favoravelmente à
constitucionalidade questionada, quando entender que o ato realmente ofende
norma inserida na Carta Magna. Caso contrário, estaria afrontando
sua consciência jurídica e, sobretudo, a própria Constituição!..."
4.
Ainda comentando o § 3º do artigo 103 do Texto Maior, mencionados
juristas aduzem, em alusão a texto inédito do Ministro Moreira
Alves, que este, "perplexo diante dos termos dessa preceituação",
indaga inicialmente se o Advogado-Geral da União terá de
"defender a constitucionalidade de uma lei estadual ainda quando argüida
sua inconstitucionalidade por haver invadido o âmbito de competência
legislativa da União Federal" 5
.
Com efeito, adotado este entendimento, o Advogado da União estaria
sendo constrangido a defender, por exemplo, uma lei estadual que instituísse
imposto sobre produtos industrializados. Nesta hipótese, poderia
ele ser acusado de estar incidindo no impedimento previsto no art.30, I,
da Lei nº 8.906/94 (exercício de advocacia por servidor da
administração direta, indireta e fundacional, contra a Fazenda
Pública que os remunere ou à qual seja vinculada a entidade
empregadora), visto que o IPI é de competência da União,
competência esta que estaria sendo invadida pelo Estado. Mais do
que isto, poderia ele estar traindo, na qualidade de advogado ou procurador,
o dever profissional, prejudicando interesse, cujo patrocínio, em
juízo, lhe foi confiado (Código Penal, art.355).
Referido texto do Ministro Moreira Alves elenca ainda mais duas questões:
"Como explicar esse dever, em hipóteses como essa, daquele
que, por definição, é defensor dos interesses da União?"
e, ainda, "para que essa defesa técnica necessária,
se ela já é feita pelo Poder Legislativo ou pelo Chefe do
Poder Executivo, ou por ambos, que editaram a lei ou o ato normativo?"
6.
No que toca a esta última indagação, vamos ainda mais
além na defesa da Constituição da República,
sustentando que sequer o Chefe do Poder Executivo estará obrigado
a promover a defesa técnica da lei ou ato normativo, se plenamente
convencido de sua inconstitucionalidade. Assim não fosse, como explicar
a sua legitimação ativa para a propositura de ADIn tendo
por objeto a declaração de nulidade de lei em face da Constituição?
7
04. As reflexões apresentadas nos tópicos anteriores
apontam claramente para a inexistência do contraditório na
ADIn . Por conseqüência, é ampla a liberdade conferida
ao Advogado Público para atuar da forma que entender mais eficaz
na defesa da ordem constitucional e do patrimônio público.
Não importa qual tenha sido a parte que legitimamente intentou a
ação direta de inconstitucionalidade: sempre será
inadmissível obrigar o advogado público a promover a defesa
de ato ou texto normativo, quando convencido de que o texto questionado
contraria os princípios da legalidade e da indisponibilidade do
interesse público.
No âmbito do Estado de São Paulo, como já dito, esta
desobrigação está delineada em sua Constituição,
que faz uma ressalva expressa: o texto ou ato impugnado será defendido
pelo Procurador Geral do Estado, no que couber, com o que se evitou
a reprodução, no âmbito estadual, de imperfeição
técnica existente no texto constitucional republicano. Tenha-se
sempre em mira que os princípios constitucionais da legalidade e
da indisponibilidade do interesse público vinculam inarredavelmente
a Procuradoria Geral do Estado, nos termos do que dispõe o artigo
98, "caput", da Carta Paulista.
Tal ressalva não consta do texto republicano, que dispõe
simplesmente que o Advogado-Geral da União "defenderá
o ato ou texto impugnado"; tampouco consta do art. 4º, inciso
IV, da Lei Complementar nº 73, que, da mesma forma, atribui ao Advogado-Geral
da União a defesa (sem ressalva), nas ações diretas
de inconstitucionalidade, da norma legal ou ato normativo objeto de impugnação.
Uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico,
porém, mostra que isto não será suficiente para se
concluir que compete ao Advogado da União defender todo ato
ou texto inquinado de inconstitucional, eventualmente até mesmo
contrário aos interesses da pessoa jurídica de direito público.
Impositivo, sim, que explicite as razões de seu entendimento 8.
A atividade do advogado público orienta-se pelo princípio
da legalidade e, como ensina José Afonso da Silva, a lei "caracteriza-se
como desdobramento necessário do conteúdo da Constituição"
9.
Num Estado Democrático de Direito, nada pode obrigar o advogado
público a defender a manutenção, no ordenamento jurídico,
de norma que não represente desdobramento da Constituição.
Deve ele atuar como curador da coisa pública, não como autômato
defensor de manifestações normativas divorciadas dos princípios
constitucionais.
05. A função do Advogado da União ou do
Procurador do Estado sequer está restringida em razão da
pessoa que propôs a ADIn: legitimados para a sua propositura são,
entre outros, o Presidente da República ou o Governador do Estado,
que não se confundem com a União ou os Estados Federados.
Ora, sendo o chefe do Poder Executivo uma das partes legitimadas para propor
a referida ação, teremos claramente determinado o alcance
constitucional que se atribuiu às funções da advocacia
pública, consistentes sempre na defesa do interesse público.
O advogado público não se subordina, senão administrativamente,
ao chefe do Poder Executivo e, assim, poderá manifestar-se contrariamente
a pedido por este formulado. Não estará advogando contra
os interesses de seu representado (a União ou o Estado) mas, sim,
na qualidade de curador do interesse público, manifestando-se contrariamente
à pretensão formulada pelo chefe do Poder Executivo.
Tanto esse é o espírito que deve nortear a conduta do advogado
público que a Lei federal nº 4.717, de 29.6.65 (Lei da Ação
Popular), em seu artigo 6º, § 3º, faculta ao representante
legal da pessoa jurídica de direito público abster-se de
contestar o pedido ou, até mesmo, posicionar-se ao lado do autor
da ação popular, desde que isso se afigure útil ao
interesse público.
Ora, se essa visão de curador da res pública
que possui o advogado público no exercício de seu mister
está contemplada em lei de 1965, editada no período de centralismo
revolucionário e de obscurantismo da ditadura militar, muito mais
legitimada está pela nova ordem constitucional inaugurada em 1988,
que estabeleceu inúmeros mecanismos de proteção à
Administração Pública (artigos 37 da Constituição
Federal e 111 da Constituição Paulista) e alçou, no
Estado de São Paulo, o advogado público à condição
de guardião da legalidade e da indisponibilidade do interesse coletivo
no âmbito da Administração.
A expressão "no que couber" estampada na Carta Política
Paulista possibilita ao Procurador Geral do Estado defender o texto estadual
ou municipal impugnado na parte em que, na sua ótica, não
estiver ferindo a Constituição. Em situação
inversa, impõe-se que reconheça o pedido e postule a declaração
de inconstitucionalidade.
Dada a natureza de sua função na ADIn, pode, aliás,
o Procurador Geral do Estado, promover (ou não) a defesa de ato
normativo municipal, sem que com isto se possa alegar invasão de
competência do Procurador Municipal ou violação do
princípio da autonomia dos entes federados. Não há
como excluir um ato normativo municipal inquinado de inconstitucional da
apreciação pelo Procurador do Estado, visto que os municípios
integram os Estados Federados. Ignorar esta função ou menosprezar
a sua importância, poderá, eventualmente, não implicar
em prejuízo econômico imediato para os cofres públicos
estaduais. Não obstante, tal atitude ensejará muitas vezes
afronta à ordem constitucional estadual a que os municípios
devem se submeter. Politicamente, constituirá manifestação
de descaso para com a comunidade (necessariamente domiciliada em municípios
integrantes do Estado) a quem o Poder Público tem o dever de servir.
E não se olvide que "as abstenções estão
na dependência do princípio da legalidade tanto quanto as
ações" 10.
"Mutatis mutandi", idênticos são os fundamentos
que legitimam a atuação do Advogado da União nas ações
objetivando a declaração de inconstitucionalidade de atos
normativos estaduais em face da Carta da República.
06. À luz dos argumentos expostos, podemos chegar às seguintes
conclusões:
06.1. O advogado público não está obrigado a defender
norma inconstitucional e contrária aos interesses primários
da Administração, mesmo quando estes interesses não
coincidam com os do chefe do Poder Executivo (o que não é
infreqüente em sede de ADIn);
06.2. Sua função, na ADIn, é a de curador da coisa
pública e não de advogado de normas em abstrato;
06.3. Seu representado (Estado ou União) não tem legitimação
ativa ou passiva na ADIn;
06.4. Nas ações diretas de inconstitucionalidade, as manifestações
do Advogado da União, sobre lei estadual em face da Constituição
da República, e do Procurador do Estado, sobre lei municipal em
face da Constituição do Estado, não constituem violação
ao princípio da autonomia dos entes federados.
NOTAS
1. A Lei nº 4.377/64 estabelece que, na sessão de julgamento, findo o relatório, poderão usar da palavra, na forma do Regimento Interno do Tribunal, o procurador-geral da República, sustentando a argüição, e o procurador dos órgãos estaduais interessados, defendendo a constitucionalidade do ato impugnado. <RETORNA>
2. "A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro", Ed. RT, S.Paulo, 1995, pp.113/114. <RETORNA>
3. Da Declaração de Inconstitucionalidade, in "Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política", Ano I, n.2, jan/mar-1993, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, p.11.<RETORNA>
4. "Constituição de 1988 e Processo", Editora Saraiva, S.Paulo, pp.107/108. <RETORNA>
5. Id., p.107.<RETORNA>
6. Moreira Alves, "O Supremo Tribunal Federal em face da Nova Constituições - questões e perspectivas", p.9, apud Tucci, Rogério Lauria et Cruz e Tucci, José Rogério, op. loc. cit.<RETORNA>
7. Registre-se, por seu pioneirismo, a ADIn n. 1.285/1-600, proposta junto ao STF pelo Procurador-Geral da República, onde se sustenta que os artigos 105, 108, "caput", e § 2º do art.299, todos da Lei Complementar nº 734, de 26.11.93, do Estado de São Paulo, são incompatíveis com os artigos 5º, "caput", e inciso LIII, 22, I, 37, 61, § 1º, II, "d", 93, II, 127, § 1º, 128, § 5º, I, "b", 129, § 4º, c/c 93, II, todos da Constituição Federal. Em referida ADIn, os Procuradores do Estado Clécio Braschi e Ana Lúcia Câmara, ambos associados do IPAP, com brilhantismo minutaram as informações a serem prestadas pelo Chefe do Executivo Estadual, no sentido da inteira procedência dos argumentos expendidos na peça preambular, tendo referida minuta sido aprovada e adotada na sua integralidade pelo Exmo. Sr. Governador do Estado de São Paulo. "A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito Brasileiro", Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1995, pp.113/114. <RETORNA>
8. Cf., Wilson de Souza Campos Batalha - "Direito Processual das Coletividades e dos Grupos", Editora LTr/SP, 1992, p.246. <RETORNA>
9. "Curso de Direito Constitucional Positivo", Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 7ª Edição, p.107. <RETORNA>
10. Ch.Eisenmann, "O Direito Administrativo e o Princípio da Legalidade", in RDA, vol.56, S.Paulo, 1959, p.48.<RETORNA>
("Advocacia Pública" - Boletim do Instituto Paulista de Advocacia Pública n.3 - Abril/Junho-1996 - Pp.5/7).